Silvio Barbosa

Professor concursado do Curso de Comunicação Social da UFPI, campus Teresina. Doutor em Comunicação e Mestre em Filosofia do Direito é advogado e jornalista, com 24 anos de experiência de mercado, tendo trabalhado em empresas como Rede CBS (Estados Unidos), Globo, Bandeirantes, Record e TV Cultura. Autor dos livros TV e Cidadania (2010) e Imprensa e Censura (no prelo) e dos documentários Vale do rio de lama - no rastro da destruição, e Sergio Vieira de Mello, um brasileiro em busca da paz no mundo.
Professor concursado do Curso de Comunicação Social da UFPI, campus Teresina. Doutor em Comunicação e Mestre em Filosofia do Direito é advogado e jornalista, com 24 anos de experiência de mercado, tendo trabalhado em empresas como Rede CBS (Estados Unidos), Globo, Bandeirantes, Record e TV Cultura. Autor dos livros TV e Cidadania (2010) e Imprensa e Censura (no prelo) e dos documentários Vale do rio de lama - no rastro da destruição, e Sergio Vieira de Mello, um brasileiro em busca da paz no mundo.

Quem se importa com um livro no lixo? Quem se importa com a vida de um negro?

O descaso nosso de cada dia

Uma caminhada na quinta-feira à noite pela rua Visconde de Pirajá, no bairro de Ipanema, no Rio, e a descoberta de um pequeno tesouro no lixo, um livro - sim, tenho o costume de olhar o lixo alheio, de onde já recuperei até mesmo uma enciclopédia portuguesa dos anos 50, ricamente ilustrada. Eu a adotei, claro!

Foto: Silvio Henrique Vieira Barbosalivro Filho Nativo - Tragedia de um negro americano
livro Filho Nativo - Tragedia de um negro americano

Mas nesse lixo da rica Zona Sul carioca, o que me chamou a atenção foi um livro solitário, de capa dura, escura, cara de antigo, abandonado, descartado na calçada.

Passei encarando, dei mais alguns passos, parei e voltei diante do chamado. Ele me pediu mentalmente: - Venha aqui, me folheie! Pois fiz isso mesmo, abri e de cara vi que era uma jóia rara, Native Son, do norte-americanio Richard Wright, traduzido por ninguém menos que nosso grande mestre da fantasia, Monteiro Lobato, o criador da maravilhosa saga do Sítío do Pica-Pau Amarelo. O livro foi impresso em plena Segunda Guerra Mundial, em março de 1944, em São Paulo, com o título Filho Nativo – Tragedia de um negro americano (tragédia sem acento, como manda a ortografia da época).

E que tragédia um livro ser lançado fora! Saiu de onde, afinal... do apartamento de um velhinho recém falecido? Sobrou de uma mudança e o novo proprietário jogou fora? Era apenas enfeite ou peso de papel em uma das lojas próximas? Como saber... O caminho até minhas mãos fica por conta da imaginação, já que não há qualquer indicação de quem o possuiu nesses 75 anos, desde que saiu da gráfica paulistana. Não há nome do dono, nenhuma marcação ao longo das páginas, nenhum pedaço de papel anotado e esquecido ali. É como se eu fosse o primeiro e único proprietário, só que não...

Enjeitado sabe-se lá o porquê, ele já tem novo dono e um leitor ávido, que checou: todas as 381 páginas, amareladas pelo tempo, estão ali, juntamente com a introdução de Dorothy Canfield Fisher, de janeiro de 1940. Eu o personalizei, com o nome da cidade e a data em que foi adotado por mim, além de um cartão postal que será o marcador de páginas.

O livro trata do jovem negro Bigger, que divide um quarto com a mãe, o irmão e a irmã menor num cortiço de um gueto norte-americano. Enormes ratazanas roubam a comida e mordem os moradores. São pobres e vítimas do abandono e do preconceito de uma sociedade racista que ainda está a 20 anos de ouvir falar no líder dos direitos civis, o pastor batista Martin Luther King.

Bigger vai nos revelar o estado da alma de um jovem negro submetido a um sistema injusto, que só o aceita como submisso, em empregos braçais, sempre sujeito às humilhações por ter nascido negro.

Na Introdução, Dorothy cita uma pesquisa da Comissão Nacional da Juventude, que diz que “ser negro significa não somente viver na presença de severas limitações físicas, como ainda, o que é mais importante para a personalidade, viver numa cultura cujos incentivos, recompensas e castigos afetam o desenvolvimento do tipo desejável de cidadão”. A tragédia que cerca o protagonista desde sempre, leva Dorothy a concluir que “não há coração humano que não sinta abalar-se com o drama de Bigger Thomas”.

Que livro tão antigo, mas ao mesmo tempo tão atual. Bigger vive num cortiço de um gueto norte-americano, numa sociedade racista dos anos 40, ou vive na favela de uma periferia brasileira violenta, em que jovens negros sofrem privações e humilhações diárias?

A escritora favelada Carolina de Jesus traçou na obra Quarto de Despejo uma poesia que tenta explicar o inexplicável. Para Carolina, que vivia de revirar o lixo dos outros e que colecionava livros descartados (muito eu!), a favela é o quarto de despejo da sociedade, onde se jogam lixo e pessoas, coisas, enfim, sem utilidade.

Este livro, que não teve mais utilidade e que foi parar no lixo de alguém, agora renasceu para me ajudar a ver o mundo. E olhe só, essa é a função do livro, não é mesmo? Abrir nossos olhos para o que está ao nosso redor, aquilo que não percebemos mais e que precisamos voltar a enxergar.

Livros importam! Vidas negras importam! (Black Lives Matter, nome de um movimento norte-americano contra a discriminação e violência aos jovens negros)

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