Dignidade para os “indignos”; por Graziela Mantovaneli
Ao escrever isso, lembrei-me do poema de Manuel Bandeira: “O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem”Há pouco mais de um ano, o meu currículo foi selecionado para trabalhar dentro de uma instituição brasileira, reconhecida internacionalmente. Foi um misto de sensações. Uma grande alegria, por poder acrescentar em meu currículo o nome dela e aquele frio na barriga, por trabalhar com um público que nunca imaginei, as pessoas privadas de liberdade.
Sou graduada em enfermagem e pós-graduada em Emergências e UTI e, também, em Pediatria e Neonatologia (minha área de atuação favorita). Por que aceitei trabalhar com pessoas consideradas “indignas” pela sociedade?
Sabe-se que existem unidades prisionais em que os presos estão reclusos em condições sub-humanas. Aglomerados em pequenas celas, onde centenas de pessoas dividem um pequeno espaço, dormindo no chão (os que conseguem um local para se deitar), sem roupa para vestir, sem banho de sol (cheios de “sarna” e outras doenças de pele), tuberculose, doenças sexuais, transtornos psicológicos, sofrendo abuso sexual de outros presos, sendo espancados pelos mais fortes, recebendo marmitas estragadas, sem banho, sem atendimento médico, sem medicamentos, fazendo suas necessidades em um buraco no canto da cela (na presença de todos). Cadeias onde o cheiro é insuportável, uma mistura de fezes, comida estragada, sujeira, suor e mofo.
Ao escrever isso, lembrei-me do poema de Manuel Bandeira:
“O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem”.
Não vou falar sobre crimes ou penalidades ou da dor que eles causaram (e causam). Mas quero deixar bem claro, que as pessoas presas merecem cumprir a pena designada pelo crime que cometeram, para depois voltar à vida em sociedade. Mas precisa ser em um ambiente que fere toda a dignidade da pessoa humana? Uma pessoa inserida nesse contexto consegue se ressocializar e retornar ao convívio da sociedade como um ‘cidadão de bem’?
Você sabia que a maioria deles deseja trabalhar dentro dos presídios (para aprender uma profissão) e estudar (sim, muitos são analfabetos) para remir a pena? Mas, não são todas as unidades prisionais que disponibilizam isso.
Seja bem sincero(a), você aceitaria trabalhar ao lado de um “ex-presidiário”? Pois é! A maioria deles não consegue um local para trabalhar, depois que sai da prisão. Eles levam consigo, para sempre, o estigma de ter sido preso. Então, sabe o que acontece? As cadeias funcionam apenas como um depósito, nem vou dizer uma lixeira, onde a sociedade joga o que não presta.
Mas, lá dentro o crime os abraça e promete uma vida melhor, para eles e para a suas famílias e a tão esperada ressocialização não acontece. Infelizmente, alguns deles (vou dizer alguns) saem piores do que entraram!
Então, esta é a minha resposta
Eu fiz a minha parte. Levando dignidade para os “indignos”. Cumprindo o juramento que fiz: “Dedicar minha vida profissional a serviço da humanidade, respeitando a dignidade e os direitos da pessoa humana, exercendo a Enfermagem com consciência e fidelidade; guardar os segredos que me forem confiados; respeitar o ser humano desde a concepção até depois da morte; não praticar atos que coloquem em risco a integridade física ou psíquica do ser humano; atuar junto à equipe de saúde para o alcance da melhoria do nível de vida da população; manter elevados os ideais de minha profissão, obedecendo os preceitos da ética, da legalidade e da moral, honrando seu prestígio e suas tradições”.
Quais foram as minhas contribuições dentro dessa instituição?
- Atuei, como enfermeira, em ações de saúde, dentro de presídios. Atendendo as pessoas presas com dignidade e empatia, deixando todos os meus ‘PRÉ-conceitos’ do lado de fora das unidades.
- Redigi documentos técnicos, dentre eles, uma proposta de Cartilha de Amamentação para Mulheres Privadas de Liberdade. Nela pude contribuir com os meus conhecimentos científicos e práticos em amamentação, escrevendo, de forma bem suscinta e objetiva, e ilustrando as páginas com os meus desenhos técnicos e as minhas aquarelas.
- Em uma viagem (pessoal) ao Rio de Janeiro, fui convidada pela Secretaria Estadual de Administração Penitenciária para conhecer a UMI, Unidade Materno-Infantil do Complexo Penitenciário de Gericinó/RJ. Lá, eu pude ver muitas grávidas presas, por trabalharem no tráfico. Mulheres captadas com a falsa ilusão de que não seriam detidas por estarem grávidas. Na UMI também haviam muitas outras mulheres amamentando seus bebês. Pude auxiliar algumas no processo de amamentação.
A realidade da mãe presa
Uma mulher presa pode amamentar? Sim, elas também têm o direito de amamentar. Existem unidades que contém locais preparados para que os bebês permaneçam ao lado delas, mas apenas durante 6 meses, após esse tempo eles são separados. Essa é uma forma de garantir o direito que elas têm de amamentar, o que ajuda no fortalecimento do vínculo afetivo entre a mãe e o bebê, que é fator preponderante na reconstrução da vida da mulher encarcerada. Sem falar dos benefícios que o leite materno traz para a saúde da criança, com frutos que vão até a sua adulta.
Após os 6 meses, o drama é o seguinte, se essa mulher não conseguir comprovar na justiça que existem pessoas da família aptas para cuidar do seu bebê, ela perderá a guarda da criança, que será encaminhada para adoção. O direito da criança é permanecer no seio familiar. Eu sei que existem muitas famílias que anseiam por um filho e/ou que estão na fila aguardando essa criança/adolescente, mas a adoção é a prova de que TODA a sociedade falhou, porque uma criança precisou ser arrancada de uma família para ir para outra.
“A convivência familiar e a manutenção da criança e do adolescente junto de sua família natural será sempre a prioridade no atendimento. Somente após o esgotamento de todas as vias para a recomposição do vínculo familiar sadio é que se partirá para a forma excepcional de convivência familiar, qual seja, a família substituta.” (ECA, Artigo 19).
Foi um privilégio trabalhar nessa instituição, durante um ano. Eu passei a enxergar as pessoas presas com um outro olhar. É preciso que as políticas públicas funcionem. Que toda a sociedade atue, prevenindo que crianças se tornem “criminosos”. Que os presos realmente sejam ressocializados, desejando se tornar cidadãos, retornando à sociedade de forma digna e com condições de sustentar a si próprios e às suas famílias.
A profissão invisível
E os profissionais que trabalham dentro das unidades prisionais? Conhece essa profissão? Já ouviu falar sobre a Polícia Penal?
É a profissão que tem conpetências em todas as atividades de execução penal, tais como, policiamento das unidades prisionais, fiscalização de prisão domiciliar, acompanhamento de monitoração eletrônica, policiamento de medidas restritivas da lei Maria da Penha, policiamento de quaisquer outras medidas cautelares diversas da prisão, assim como, atividades de inteligência e investigação de crimes que envolvam diretamente ou indiretamente as unidades prisionais.
Mas a realidade é a seguinte, unidades prisionais 'superlotadas', pressão do ambiente de trabalho, os riscos iminentes, a sobrecarga pela falta de servidores, a invisibilidade social, a falta de valorização pelo poder público. Essas pessoas também precisam de assistência em saúde (física e mental) e de ter a sua profissão regulamentada, pois são essenciais para a segurança da sociedade, mas, "cadeia" (e quem trabalha nela) não dá voto, não é?
Dia 12 de maio: Dia Internacional da Enfermagem
Aproveito para parabenizar aos meus colegas de profissão pelo dia. Uma profissão de grande valor, mas também esquecida! São mais de dois milhões de profissionais que aguardam um piso salarial que faça jus ao reconhecimento social e profissional, formação e dignidade de vida que devem acompanhar essa tão importante classe de guerreiros da saúde.
Um grande abraço e até breve!
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