O velhinho da calçada; por Flávio de Ostanila
"Diante de mim, estava um homem que sobreviveu à seca e à fome caçando preá, comendo macambira e bebendo água barrenta"Havia pouco mais de um ano que eu morava naquela rua. Frequentemente via um senhor, na faixa dos oitenta anos de idade, sem camisa, sob a sombra de uma árvore tão velha quanto ele, sentado numa espreguiçadeira de pano encardido pelo suor das costas e pelo tempo.
![Flávio José Pereira da Silva [Flávio de Ostanila] é policial penal, escritor, bacharel em Direito e professor de Língua Portuguesa](/media/image_bank/2022/7/flavio-jose-pereira-da-silva-flavio-de-ostanila-e-policial.jpeg)
Eu, sempre ocupado, jamais conversara com ele. Buzinava, no máximo. Entretanto, por causa de um defeito no carro, saí a pé naquele dia. E lá estava o idoso pelejando com um pedaço de carne seca:
– Tá servido?
– Não, obrigado!
– Vamos sentar?
Apesar de ter um monte de coisas para resolver, aceitei o convite e um café. Houve uma época, dizia-me, em que a gente sabia o momento da chuva; mas, hoje, quando pensa que não, tá seca! Aí, mais tarde, quando pensa que não, tá inverno!
Prolongou a palestra fazendo comparações entre o antes e o agora, numa espécie de saudade e desengano. Falou dos negócios que fez com pagamentos à vista e daqueles em que a palavra era suficiente para garantir a posse do bem. Discorreu sobre o período em que estudava e até agradeceu as palmadas que levou do mestre: “Professor Sandoval era pessoa direita. Num dava nota a ninguém não! podia ser filho do coroné". Até arriscou ler uma expressão estampada em minha camiseta, sem sucesso porque era uma marca estrangeira: “Naquele tempo não tinha essa frescuragem de inglês não!”.
Embora eu tivesse o costume de falar muito, não conseguia interromper meu vizinho, que parecia não só querer me ensinar algo, como também desabafar. Naquela manhã, ainda falou sobre futebol, política, música. Cantarolou algumas marchinhas de carnaval e criticou as músicas atuais, “que só dizem imoralidade”. No meio do diálogo, um menino de mais ou menos sete anos passa entre mim e ele: “Deus me livre, na minha infância, atrapalhar a conversa dos mais velhos!". Na volta, o garoto se despede com um “tô vazando, vô”. E meu anfitrião, com ar de reprovação, balança a cabeça.
Suspirou, tomou um gole de água e continuou: "Antigamente as desavenças eram resolvidas na peixeira. Hoje, ou o cabra paga pra outro fazer, ou paga pro advogado resolver. O dinheiro e a covardia é que mandam em tudo. Nem amigo de verdade existe mais: quem se aproxima da gente é só na vantagem".
Meu celular não parava de tocar – ex-mulher exigindo a pensão, credores, namorada, mecânico, patrão. Estar ali, no entanto, era me deleitar com experiências que eu nunca viveria, as quais eu não teria o privilégio de contar a minhas filhas: o prazer de dormir na varanda sem temer a bandido, de caminhar pelas ruas e não ser assaltado; a emoção de pular a fogueira no São João; a alegria de distribuir cartões de Natal.
Diante de mim, estava um homem que sobreviveu à seca e à fome caçando preá, comendo macambira e bebendo água barrenta; que viajou léguas em lombo de jumento atrás do sustento da família; que teve todos os dentes arrancados; que criou doze filhos, e perdeu alguns deles também. E apesar dos percalços, orgulhava-se de jamais ter derramado uma lágrima na frente da mulher, falecida, com quem fora casado durante sessenta anos.
Eu o escutei por umas horas. Seu repertório era inesgotável. Ouvi as mais variadas histórias, que versavam sobre respeito, honra, honestidade, moralidade e perseverança: um épico narrado pela própria personagem. Infelizmente tive que ir, visto que meus compromissos, incluindo uma viagem de três semanas a Simões, cobravam-me a presença.
Quando retorno à minha casa, notei a ausência do bom homem; seu assento também não estava na calçada. Ao buscar informações, obtive a triste notícia de que ele falecera na noite daquele dia em que proseamos.
Além dos filhos, deixou trinta netos, doze bisnetos, dívida alguma e nem um centavo no banco. Só alguns familiares choraram sua morte; não nomearam nenhuma rua em sua homenagem; nenhum prêmio durante a vida, tampouco pós-morte, foi-lhe ofertado. Viveu oitenta e sete anos, dos quais me proporcionou duas agradáveis e proveitosas horas de aprendizagem... e eu nem sequer sei seu nome.
Flávio de Ostanila é policial penal, escritor e professor; bacharel em Direito, Letras Português e Inglês.
Confira AQUI a última crônica do autor publicada com exclusividade pelo JTNEWS.
Fonte: Flávio de Ostanila
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