Lembranças de viver

"Vinte anos! derramei-os gota a gota Num abismo de dor e esquecimento... De fogosas visões nutri meu peito... Vinte anos!... sem viver um só momento!" (Saudades, Álvares de Azevedo).

Observem a melancolia da estrofe transcrita acima! Meu Deus, quanta tristeza! Em contraposição a tamanha infelicidade, o título de meu texto se opõe a outro poema do mesmo pessimista autor.

Foto: Reprodução / Redes SociaisNa série The Big Bang Theory, Jim Parsons interpreta Sheldon Cooper, um brilhante Doutor em Física que não compreende o sarcasmo.
Na série The Big Bang Theory, Jim Parsons interpreta Sheldon Cooper, um brilhante Doutor em Física que não compreende o sarcasmo.

Hoje faz 25 anos de minha investidura no cargo de policial penal. Mais de duas décadas de boa vida, pura "gratiluz". Contrariando esse escritor "mimizento" do século XIX, cito o contemporâneo cantor Ney Matogrosso: "Dizem que sou louco por pensar assim/Se eu sou muito louco por eu ser feliz/Mas louco é quem me diz/E não é feliz, não é feliz".

Mais de duas décadas de sossego. Durante as 24 horas de plantão, para mim a melhor parte, sem dúvida, sempre foi me levantar às duas horas e ficar no posto até às quatro da manhã, depois de um dia cheio de atividades tão agradáveis que não sobrava tempo nem ao menos para pensar, e sabemos: "Mente vazia, oficina do Diabo". Eis o porquê de eu nunca ter necessitado de psicoterapia. 

Se me pedissem para definir meu longevo exercício em uma palavra, eu diria "alegria". Só tive colegas eficientes, "cangas topados" e, de quebra, bem-humorados; e não conheci um corrupto tampouco um "traíra" no sistema. Sem contar que era frequente receber elogios do chefe e condecorações do secretário de Justiça; não me fizeram armações (ardis, "casinhas"); não mentiram sobre mim; não respondi a nenhum processo administrativo disciplinar; sem suspensão nem remoções contra minha vontade; nunca precisei fazer um empréstimo consignado. Na verdade, nem de greve participei. Para quê?! O governo já nos "dava" mais do que merecíamos... e continua nessa bondade divina.

Não nego que ouvi um e outro reclamar feito o Escrivão Isaías Caminha, personagem de Lima Barreto; entretanto, tal qual no romance pré-modernista, as lamúrias desses servidores não passavam de ficção.

O que posso falar mesmo são de minhas próprias recordações. Os reeducandos ("presos", ou mesmo "criminosos", são palavras muito duras para se proferirem num ambiente tão suave) jamais me desacataram, ameaçaram-me ou me agrediram; em retribuição, não foram vítimas nem sequer do uso moderado da força. Sempre transitei sem temor pelas unidades prisionais (já está na hora de trocar esse adjetivo também!) e pelas ruas. A propósito, não perco uma festa, seja onde for! Ando em paz, desarmado; não tenho isso de ficar rigorosamente alerta, de me sentar com as costas para a parede ou de não cochilar dentro de um ônibus. Quer saber? nem me assustam essas facções. Dizer que minha profissão é alvo desses grupos é um exagero.

Claro que, como em qualquer atividade, aconteceram alguns eventos, porém nada de mais: umas duas rebeliões, algumas fugas, arremesso de fezes, servidor tomado refém, disparo acidental de arma de fogo com consequente ferimento (leve, certamente!), suicídio. Não queria mencionar o último para não se criar um mal-entendido de que exerço um ofício estressante. Pelo contrário, adoro cada missão, sobretudo posar para fotos e vídeos.

Retomando o lado bom desse labor. Corrigindo: lado, não; o todo! Quase trinta anos, e tenho pressão arterial e glicemia regulares. Mantive minha sanidade mental; não os três casamentos, mas a culpa não foi minha! 

Sou um indivíduo extremamente calmo, incapaz de levantar a voz; tenho a paciência de uma tartaruga. Nunca consumi álcool nem drogas. Em nenhum momento, tomei remédio para dormir. Durmo muitíssimo bem, principalmente no "quarto de hora".

Quer saber o que realmente me incomoda? Ter que me aposentar um dia. Os políticos do Brasil são ótimos. Perfeitos seriam se abolissem nosso direito à aposentadoria. 

Sem pretender soar quixotesco (o que remete ao Major Quaresma, de um romance de Lima Barreto), quereria eu viver duzentos anos para poder servir prazerosamente ao Estado até o último suspiro; e, na lápide, versos exultantes da poesia Lembranças de morrer, do mesmo ultrarromântico apresentado no introito:
"Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta – sonhou – e amou na vida".


P.S.: É uma obra ficcional. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e/ou lugares é mera coincidência... ou devaneios do autor.

Foto: ReproduçãoEscritor Flávio José Pereira da Silva
Escritor Flávio José Pereira da Silva

Flávio José Pereira da Silva [Flávio de Ostanila] é policial penal, escritor, bacharel em Direito e professor de Língua Portuguesa.

Fonte: JTNEWS

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