Especialista do Depen fala no Piauí sobre 'Panorama Nacional da Violência e do Encarceramento'

O Brasil possui 3% da população mundial e concentra 14% dos homicídios registrados, mesmo sem estar em guerra

O policial penal federal [do Departamento Penitenciário Nacional], Cristiano Torquato Tavares, especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos, esteve no Piauí essa semana e proferiu palestra na Academia de Formação Penitenciária do Estado do Piauí (ACADEPEN/PI), órgão da estrutura organizacional da Secretaria de Estado da Justiça. 

A palestra, cujo tema aborda o 'Panorama Nacional da Violência e do Encarceramento', foi direcionada aos policiais penais do Piauí, e convidados, a exemplo do juiz da Execução Penal de São Luis do Maranhão, Fernando Mendonça; a representante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Piauí, Gabriela Lacerda, coordenadora do Programa Justiça Presente;  o delegado de Polícia Civil, Célio Benício, de Uruçuí do Piauí e Anamelka Cadena, diretora de Gestão Interna da Secretaria estadual da Segurança Pública.

Foto: Palestra Cristiano Torquato/ilustraçãoA disparidade alarmante entre números de homicídios do Brasil e do Mundo
A disparidade alarmante entre números de homicídios do Brasil e do Mundo

O assunto, além de ser bastante contemporâneo, traz informações que repercutem diretamente nas atividades do público alvo presente, o que propicia uma interação bastante razoável.

Uma análise da desigualdade no Brasil

O palestrante Cristiano Torquato, inicia sua exposição com citação relevante do art. 3º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB), e dentre os objetivos da República ali elencados, cita a erradicação da pobreza, e conclui esse assunto com o registro de que a injustiça social é causa inconteste do aumento da violência. Confira:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (grifo nosso) Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) X - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos. (grifo nosso) Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) VII - redução das desigualdades regionais e sociais.

Em setembro de 2015, 193 chefes de Estados-membros da ONU assinaram um manifesto em prol do desenvolvimento sustentável do planeta. Nesse manifesto restou reconhecido que a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões, incluindo a pobreza extrema, é o maior desafio global e um requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável. (FBSP e IPEA, 2018, P. 87).

Segundo o instituto World Wealth and Income Database, após pesquisa elaborada por uma equipe composta por centenas de estudiosos, liderados por Thomas Piketty, foi disponibilizado um banco de dados que permite comparar a evolução da desigualdade de renda no mundo (https://wid.world/wid-world/).

Sobre o Brasil, o estudo classificou a manutenção da desigualdade no País como “chocante”, principalmente se comparada com outros países de alta renda. “É digno de nota que a renda média dos 90% mais pobres no Brasil é comparável a dos 20% mais pobres na França.”

Este tema chama atenção quando olhamos o 1% mais rico no Brasil que só perde para o 1% mais rico Catar e detêm mais de 50% das terras cultiváveis e mais reservas em dinheiro que os 90% mais pobres. (MOREIRA, 2019, p. 27)

Três países que menos concentram renda são: Holanda onde o 1% mais rico detém 6,3% da riqueza do país, a Dinamarca (6.4%), Finlândia (7,4%). (ONU, 2017). No Brasil temos 1% mais rico detendo 28% da renda. (IBGE, 2018) e 05 bilionários concentram a riqueza da metade da população. (OXFFAN 2018).

Países com desigualdade baixa geralmente possuem realidades de desenvolvimento humano muito superiores, ainda que possuam o mesmo PIB.

O escritório das Nações Unidas Contra Drogas e Crimes, o UNODC e o Instituto Latino Americano de direitos Humanos, o ILANUD, verificam que quanto maior desigualdade na distribuição de renda, teremos como resultado taxas mais elevadas de homicídios e de crimes contra a propriedade.

Destaca-se publicação da revista do Colégio Interamericano de Defesa, de 2017, que constata que a maior tragédia da desigualdade não é apenas falta de bens materiais, mas seu efeito psicossocial que afeta o próprio sentimento de orgulho pessoal e de pertencimento a uma sociedade e gera um sentimento de inferioridade, humilhação:

A injustiça social, ao não permitir que alguns segmentos possam satisfazer suas necessidades materiais, acaba fortalecendo o sentimento de vulnerabilidade num ambiente de expectativas frustradas. Este processo, aliado à baixa mobilidade social, alimenta as divisões em segmentos sociais e a violência.

O endurecimento da repressão por meio da legislação penal não é capaz de reduzir a violência

A miséria favorece a violência, e apenas realizar operações de repressão e de endurecimento da legislação penal, embora sejam importantes, são insuficientes para reduzir os índices de violência de forma contínua. É preciso reconhecer e atacar as causas e não as consequências; resolver, e não apenas gerenciar o problema.

O segredo reside na resignificação da forma de enxergar a redistribuição de renda, não apenas como ferramenta de justiça social, mas como solução para segurança pública, como uma ferramenta apta a ajudar numa trajetória brasileira, a exemplo do ocorrido em outros países.

Sinteticamente pode-se dizer que a diminuição das desigualdades constitui a forma mais eficiente e econômica de diminuição dos homicídios, da criminalidade e do encarceramento. O Brasil possui 3% da população mundial e concentra 14% dos homicídios, mesmo sem estar em guerra.

AMÉRICA LATINA - Com uma taxa de 24 homicídios por 100.000 habitantes em 2015, a região é responsável por 33 % dos homicídios no mundo, apesar de abrigar apenas 9% da população mundial segundo estudo do BID de nominado “Os custos do Crime e da Violência”.

A Organização Mundial da Saúde considera que o crime e a violência na região alcançaram níveis epidêmicos. Dado angustiante é a taxa de jovens vítimas da violência. O Atlas da Violência 2019 alerta que, em 2017, as mortes por homicídio de jovens do sexo masculino entre 15 e 29 anos foi de 54,3%. Contabilizados os homicídios na faixa dos 15 aos 19 anos, a taxa chega a inacreditáveis 59,1%. Em outras palavras, de cada 10 jovens (de 15 a 19 anos) que entram nos necrotérios, 06 deles são vítimas de homicídios no Brasil.

O Brasil ostenta uma das taxas de homicídio mais elevadas do Mundo. Maior do que o percentual de países como Cabo Verde, Kênia, Haiti, Paraguai, Etiópia, Angola, Zâmbia, Mongólia e Afeganistão.

Foto: Palestra Cristiano TorquatoTaxas de aprisionamento no Mundo - No Brasil a maior taxa é no Acre e a menor é no Estado da Bahia
Taxas de aprisionamento no Mundo - No Brasil a maior taxa é no Acre e a menor é no Estado da Bahia

 Segundo o Relatório do TCU (2019), o Sistema Penitenciário Nacional demanda um valor estimado de R$ 97,8 Bilhões para, no prazo de 18 anos (R$ 5,4 Bilhões anuais), extinguir o déficit de vagas prisionais, reformar unidades prisionais precárias e viabilizar seu pleno funcionamento.

Outro assunto correlato 

O que leva uma pessoa ao cometimento de um crime? Quais as causas do crime?

A criminologia aponta vários fatores que levam ao cometimento de crimes. Disfunções psíquicas, biológicas, sociais, de gênero, demográficos, religiosos, culturais, emocionais, patológicos, entre outros podem estar associadas a um histórico de vida familiar para motivar o indivíduo a cometer assassinatos.

Ainda, o uso da violência letal pode ser largamente influenciado pela presença de mais fatores criminógenos como armas e drogas psicotrópicas. Por outro lado, a miséria, a urbanização precária, a impunidade, e a cultura machista também são características que contribuem para as cidades latino-americanas liderem o ranking mundial de homicídios.

Outra das prováveis causas de aumento da violência no Brasil pode estar relacionada também com a desestruturação familiar e a falta de planejamento e de valores éticos.

Em uma verificação rápida no prontuário dos presos, constata-se facilmente o número elevado de ausências de nome do pai em suas identidades. Isto denota que as famílias das pessoas condenadas não possuíram a figura do pai. A falta deste valor familiar coincide com a maioria do público criminal.

Foto: Jacinto Teles/JTNewsColunista Cristiano Torquato - visita sede do Portal JTNEWS
Cristiano Torquato - como colunista do JTNews, também tem contribuído para importantes discussões científicas

Além dos relatos da ausência da figura da pai, pode-se constatar nas entrevistas técnicas, e nos documentos identificadores, nos quais muitos encarcerados, relatam traços de inexistência de referencial familiar positivo, lares com distúrbio de relacionamentos, relatos de abusos e de agressividade na infância. Não raros casos além da ausência do pai, relatam a ausência da mãe, sendo criados por terceiros, instituições de amparo, ou mesmo nas ruas.  

Tais fatores reforçam o pensamento de que a desestruturação familiar não é consequência, e sim é uma das principais causas da violência.

O Brasil vem desenvolvendo algumas ações importantes para enfrentar essa problemática, mas, à luz do JTNEWS, ainda necessita de muitas ações a serem desenvolvidas de forma integrada, sobretudo no campo da Educação e da Distribuição da Renda.

Ainda acerca dos desdobramentos de conclusão da palestra do especialista Cristiano Torquato, aqui trancreve-se o que esta, indica como solução no âmbito da atuação do Departamento Penitenciário Nacional, direta ou indiretamente.

PLANO DIRETOR DE MELHORIAS DO SISTEMA PRISIONAL

Trata-se de uma ferramenta que objetiva a integração das esferas estadual e federal, fortalecimento institucional e administrativo dos órgãos de execução penal, visando a uniformização e o melhoramento do atual modelo prisional, através do planejamento de ações, pelos vários setores finalísticos dos órgãos estaduais de administração prisional.

Plano possui 16 objetivos estratégicos, pré-definidos pela União, nos quais cada unidade federativa traçará seu plano de ação, com a intenção de adequar a realidade de cada estado e DF às bases legais constantes na Constituição Federal, Lei de Execução Penal, Resoluções do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e outros dispositivos legais.

A partir do Plano Diretor de Melhorias para o Sistema Prisional, o Departamento Penitenciário Nacional se propõe a contribuir para a efetivação dos direitos das pessoas privadas de liberdade, bem como para a modernização qualitativa da gestão prisional no país.

OS TRÊS EIXOS DO PLANO DIRETOR

O Plano Diretor de Melhorias para o Sistema Prisional, a partir de sua reorganização estrutural, foi dividido nos seguintes eixos estratégicos:

1º EIXO: Sistema de Justiça - visa ampliar e efetivar o acesso à justiça às pessoas sob custódia do sistema prisional; fomentar a criação e implantação de comissões técnicas de classificação, de conselhos da comunidade e de centrais e núcleos de alternativas penais, bem como incentivar a adoção de alternativas penais aos que cometerem crime de menor potencial ofensivo, diminuindo a superlotação dos estabelecimentos prisionais, evitando a reincidência e assegurando condições dignas para o cumprimento das penas e medidas cautelares;

2° EIXO: Modernização da Gestão – visa integrar os bancos de dados sobre o sistema prisional para fornecer subsídios informacionais aos órgãos responsáveis pela proposição de políticas públicas voltadas ao sistema; visa a criação de ouvidoria própria do sistema prisional, que estabeleça um canal de comunicação entre a sociedade e a administração do sistema; visa a redução do déficit carcerário através da ampliação do quantitativo de vagas; visa o aparelhamento e reaparelhamento de unidades prisionais com equipamentos e veículos; e visa atender aos profissionais prisionais no que diz respeito às ações da escola de administração prisional, fomentando a criação de carreiras próprias e a realização de concursos públicos;

3º EIXO: Reintegração Social - visa a criação, a implantação e o acompanhamento das ações dos patronatos ou órgãos equivalentes que apoiam o egresso do sistema prisional; visa a expansão e aperfeiçoamento dos programas e projetos de assistência à saúde, à educação, à capacitação profissional intra e extramuros como forma de reintegração social dos presos e egressos do sistema prisional e a prestação de assistência social às suas famílias, bem como a elaboração e execução do plano estadual de garantia dos direitos das mulheres presas e egressas.

O JTNEWS opina no contexto do fato

Eis aí, essa que é uma grande contribuição para os estudiosos e os gestores que se interessam por políticas públicas nessas áreas nevrálgicas da sociedade brasileira, em especial o aumento da violência dentro e fora das prisões. Um trabalho organizado de forma cuidadosa com excelentes e atualizados dados científicos.

Principalmente no atual contexto em que se tem o reconhecimento de uma nova Polícia no texto constitucional brasileiro; cuja essência institucional se difere das demais, haja vista que a Polícia Penal tem, não somente a função de segurança pública [e neste aspecto pode ser um grande diferencial no combate ao crime organizado] a partir do interior das prisões deste País, onde as facções comandam a violência de dentro dos presídios. 

Nesse diapasão, ninguém tem mais condições de agir eficazmente [se o poder público garantir as condições necessárias] do que estes profissioanis recém denominados de policiais penais.

Nessa mesma linha, tais policiais penais podem ser também reconhecidos como a Polícia da Cidadania, pois ao Sistema Penitenciário compete, além da segurança dos estabelecimentos penais e em seu âmbito, a humanização ou ressocialização dos detentos e, neste particular a Polícia Penal pode ser a Polícia da Execução Penal e, contando com políticas direcionadas adequadamente pode contribuir muito por ser detentora desse "know-how."

Fonte: JTNews

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