Divisas naturais do Piauí com o Ceará; por Reginaldo Miranda

"Quem tem mais interesse em preservá-las? O Piauí, cujo rio corre quase todo em seu território? Ou o Ceará, que só detém as mesmas nascentes? "

“O Ceará sempre foi um vizinho incômodo a perturbar as divisas do Piauí” -, quem assim disse foi Odilon Nunes, festejado pesquisador da história piauiense. Desde tempos imemoriais polemizam eles na Serra dos Cocos, em Ibiapaba e na faixa litorânea. Terminaram por tomar nosso litoral. E para reaver teve o Piauí de ceder uma área estratégica: as cabeceiras do rio Poti. Ora, sendo o rio Poti um dos mais importantes cursos d’água da bacia parnaibana, em cujo vale ribeirinho centenas de famílias retiram o seu sustento, é muito temerário que suas nascentes sejam cedidas para outra unidade da federação. Quem tem mais interesse em preservá-las? O Piauí, cujo rio corre quase todo em seu território? Ou o Ceará, que só detém as mesmas nascentes? Evidentemente, por questão de segurança, as nascentes de um rio devem pertencer a quem detém o restante do seu curso, porque é quem tem maior interesse em sua preservação. Foi um erro essa permuta. Cedemos uma parte de nosso território para reaver o que já era nosso.

Foto: Divulgação / JTNEWSReginaldo Miranda, Advogado e escritor. Membro titular da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí
Reginaldo Miranda, Advogado e escritor. Membro titular da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí

É importante esclarecer que a divisa natural da capitania do Piauí com o Ceará foi determinada por marcos naturais. E não poderia ser de outra forma. Dada às dimensões e ao desconhecimento era impossível separá-las por marcos artificiais. Aliás, esse critério foi utilizado em todo o continente americano. Com raríssimas exceções, todas as demais unidades da federação brasileira possuem suas divisas estabelecidas por marcos naturais nos divisores de águas, sejam cursos de rios ou cumeadas de serras. O mesmo ocorre nas fronteiras entre os países americanos. Então, há de perguntar-se: Por que a divisa do Piauí com o Ceará tem de constituir uma dessas raras exceções? Apenas para satisfazer à ganância do vizinho?

Desde 1739, D. Fr. Manuel da Cruz, Bispo do Maranhão e do Piauí, já protestava contra a invasão de seu Bispado pelos padres do Acaraú. Por essa razão, foi ele encarregado por el rei para emitir parecer sobre as delimitações dos confins de sua Diocese, com individuação, clareza e fundamentos. Em 1745, para desincumbir-se dessa missão assim se pronunciou: “É certo, que os limites dos bispados do estado do Brasil, e Maranhão se não podem fazer, senão pelas balizas naturais de montes, ou rios, e suas vertentes pela grande extensão de terras, e muitas ainda incultas, ficando sendo moralmente impossíveis por este respeito as divisões por marcos, linhas, ou rumos; o que suposto, está esse bispado dividido dos bispados de Pernambuco, e Pará, com quem confina pelos limites, de que está de posse sem ser necessário acrescentar, nem diminuir coisa alguma na forma seguinte:”(grifo nosso)

Note-se que o venerando Bispo, declarou que já estava “de posse [daquelas terras] sem ser necessário acrescentar, nem diminuir coisa alguma na forma seguinte:

Parte este bispado pela parte do sul com o bispado de Pernambuco, e lhe serve de divisa a serra da Ibiapaba, águas vertentes à Parnaíba, que corre para o Maranhão, para este bispado, e águas vertentes ao Acaracu, e Camocim para Pernambuco”. (grifo nosso)

Para esclarecer, desde 27 de fevereiro de 1725, com a edição da Bula Inscrutabili Caelestis Patris do Papa Bento XIII, foi a comarca/capitania do Piauí desanexada do Bispado de Olinda e anexada ao do Maranhão, conservando os limites estabelecidos em 1718, quando foi criada a capitania do Piauhy e, mais remotamente, os de criação da freguesia da Vitória, instalada em 2 de março de 1697.

Então, segundo o testemunho daquele Bispo, de imperecível memória, desde aquela época a divisa de seu Bispado com o de Pernambuco foi a cumeada da serra de Ibiapaba, de ponta a ponta, sem exceção, de cujo território “está de posse sem ser necessário acrescentar, nem diminuir coisa alguma”. Portanto, é falso dizer-se que o Piauí nunca teve posse da banda ocidental da serra de Ibiapaba. O Bispo afirmou ao rei, via conselho ultramarino, que detinha essa posse, de que estava sendo molestado. Com base nessa afirmativa, a decantada questão histórica está a nosso favor.

É importante ressaltar, que as divisas indicadas pelo Bispo em 1745, são as mesmas colhidas pelo decreto ainda vigente de 22 de outubro de 1880, com exceção das áreas grosseiramente permutadas. Portanto, existe uma lei em vigor que sustenta a posição do Piauí, sendo injusta a ocupação da parte ocidental daquela serra pelo Ceará. O decreto vigente está ancorado na lei que dividiu os dois Bispados, tendo raiz nos séculos XVI e XVII. Dessa forma, pode-se concluir que a banda ocidental da serra deIbiapaba pertence histórica e legalmente ao Piauí, sendo injusta, precária e clandestina a posse exercida pelo Ceará.

No entanto, mesmo depois da permuta, permanece o Estado do Ceará ocupando indevidamente extensa área territorial pertencente ao Estado do Piauí, na Serra de Ibiapaba. Terra que é do Piauí por direito. Determina o decreto n.º 3.012, de 22 de outubro de 1880, que “altera a linha divisória das Províncias do Ceará o do Piauhy”, o seguinte:

“Art. 1º É annexado à Provincia do Ceará o território da comarca do Principe Imperial, da Provincia do Piauhy, servindo de linha divisória das duas províncias a Serra Grande ou da Ibiapaba, sem outra interrupção além da do rio Puty, no ponto do Boqueirão, e pertencendo à Província do Piauhy todas as vertentes occidentaes da mesma serra, nesta parte, e à do Ceará as orientaes”.(grifo nosso) Essa linha divisória entre as duas antigas províncias está tão clara quanto a luz do sol ao pino do meio-dia. Não cabe dizer-se em sã consciência que esse decreto se circunscreve apenas aos limites dos dois municípios: Príncipe Imperial e Amarração. Não. Na verdade, determina a “linha divisória das duas províncias”. Não existe dúvida na exegese desse dispositivo legal. Aliás, é somente nesses dois municípios, em decorrência da permuta, que a divisa não é o divisor de águas. No mais, “sem outra interrupção”, fique claro, é “a Serra Grande ou da Ibiapaba”, “pertencendo à Província do Piauhy todas as vertentes occidentaes da mesma serra, nesta parte, e à do Ceará as orientaes”. É, pois, um texto de fácil dicção, sem necessidade de forçar a mente em malabarismos hermenêuticos. Não se pode e nem se deve falsear a verdade. Assim, quanto ao aspecto legal não há o que discutir, o território de inclinação ocidental de Ibiapaba pertence ao Estado do Piauí.

Por fim, para finalizar eu gostaria de lembrar da carta geográfica de Enrico Antônio Galluzzi, elaborada em 1760. Trata-se de um documento da maior importância para o deslinde dessa causa, porque assinala o território piauiense com amplo litoral e em proporções parecidas com aquelas assinaladas no depoimento do Grande Bispo do Norte.

Galluzzi ou Galúcio, como queiram, era um dos mais experimentados engenheiros de sua época. Nascido em Mântua, na Itália, no ano de 1720, estudou em sua pátria, berço do Renascimento, certamente, frequentando as escolas de Mântua, Cremona e Milão. Engenheiro Militar especializado em Astronomia e Cartografia, desde cedo foi arregimentado pelo Estado, prestando relevantes serviços junto ao Sacro Império Romano-Germânico. Inicialmente, trabalhou na revisão do armazém e fortificação da Fortaleza da cidade de Mântua, depois passando a Viena, para servir diretamente à Coroa austríaca. Foi quando travou conhecimento com o diplomata português Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, que respondia pela Embaixada portuguesa naquela Corte.

Com a assunção de D. José ao trono de Portugal e a nomeação de Sebastião de Carvalho para ministro, foi Galúcio contratado para, no posto de Ajudante de Infantaria com exercício de Engenharia do Exército Português vir demarcar as fronteiras da Amazônia. Chegou ao Brasil em 1753, integrando uma comissão científica de alta envergadura, que trouxe à nossa terra os mais modernos conceitos de engenharia, assim rompendo com a tradição medieval lusitana. Os engenheiros italianos eram altamente conceituados na Europa, porque ali os estudos de matemática e astronomia eram voltados para a determinação de longitudes. Esses estudos de matemática e astronomia eram aliados às disciplinas de desenho e cartografia, especialmente para a elaboração de projetos e plantas de cidades, prédios, estradas, pontes e fortificações.

Enfatizo esses fatos porque os cearenses o elegeram como inimigo e querem desqualificar o seu trabalho. Galúcio foi o primeiro engenheiro que prestou serviço em solo piauiense e um dos mais qualificados de seu tempo. Para elaborar a carta geográfica do Piauí ele percorreu toda a nossa capitania, de norte a sul e de leste a oeste. Durante a viagem para a Mocha, no final do ano de 1759, montado em lombo de animais, por estradas íngremes, foi sondando o rio e o caminho por terra, observando os rumos, medindo as distâncias, tomando as alturas por latitude e observando longitudes. Chegando à Mocha, no final daquele ano ainda foi ao norte e no início do seguinte ao sul, pelo Gurgueia acima até os confins de Parnaguá; Depois da Páscoa, seguiu para as partes do Nascente, atravessando as cabeceiras de muitos rios por caminhos não praticados, subindo pelo Canindé e descendo pelo rio Piauhy, diz ele “acabei de adquirir todos os elementos precisos para a construção do Mapa Geográfico de toda a Capitania, o qual logo entrei a pôr em medida, e arrumar, e a reduzir três vezes, não obstante uma grave doença adquirida na derradeira viagem, e finalmente delineei em limpo dois exemplares, que entreguei ao Ilmo. Sr. Gov. desta Capitania” (AHU. ACL. CU. 016. Cx. 7. D. 437).

Para enriquecer as informações sobre essa importante diligência de Galluzzi no Piauí, acompanhemos dois depoimentos de autoridades daépoca. O governador do Piauhy, João Pereira Caldas, em 17 de outubro de 1760:

..., e devendo também passar à mesma cidade do Maranhão o Ajudante Engenheiro Henrique Antonio Gallucio para nela executar algumas ordens de Sua Majestade, o trouxe em minha companhia presenciando por isto o grande desvelo com que este oficial se aplicou a arrumar toda a costa que permeia entre as duas cidades sobreditas, e em observar as suas latitudes, assim como tem praticado nesta Capitania a respeito do Mapa Geográfico que dela tirou em observância da Real determinação do mesmo senhor, em medir e determinar o rumo dos caminhos, e fazer as precisas observações de latitude e longitude, obrando tudo não menos como Engenheiro, que como Astrônomo, e sem que para isto tivesse o auxílio de outra pessoa, (...), na qual [diligência] se tem conduzido com honra, préstimo e acerto, com qual costuma empregar-se em todas as que se lhe encarregam” (AHU. ACL. CU. 013. Cx. 65. D. 5652).

Em 31 de dezembro de 1760, atestou o conselheiro de ultramar, Francisco Marcelino de Gouveia, nos termos seguintes:

Faço saber em como Henrique Antonio Gallucio, Ajudante de Infantaria com exercício de Engenheiro, me acompanhou em a maior parte desta vasta capitania do Piauhy, e examinou toda ela, para o efeito de satisfazer a obrigação em que o constituí por ordem de Sua Majestade Fidelíssima, de fazer um Mapa Geográfico de todo o território da mesma, o que executou com o primor que publicam os exemplares, e em menos de um ano, em cujo tempo só o seu grande desembaraço o podia finalizar, no que economizou muito a Real Fazenda, porque veio a cessar sem grande demora a despesa com o dito Oficial fazia nas conduções, e assistência de sua pessoa, que nesta diligência se esqueceu dos perigos que lhe ameaçavam as jornadas repetidas, e em tempo que devia justamente recear as enfermidades, e os assaltos do gentio, que infestam os caminhos, que o dito Oficial seguiu a fim de lhe poder dar, e se portou em termos que se faz digno e merecedor de toda a graça que o dito senhor for servido fazerlhe” (AHU. ACL. CU. 013. Cx. 65. D. 5652).

Esse Mapa Geográfico da Capitania do Piauhy, é de um valor incontestável, assinalando com bastante precisão toda a sua conformação, os acidentes geográficos, tais quais: rios, riachos, lagoas, serras, as vilas, cidade, freguesias, lugares, fazendas com e sem capela, sítios ou roças, as distâncias e outros aspectos interessantes. Constitui-se num documento de suma importância para a nossa terra, inclusive subsidiando o conselheiro ultramarino Francisco Marcelino de Gouveia, no levantamento de todas as fazendas do Piauhy e de seus possuidores, sendo ambos parte de um conjunto informativo sobre a situação agrária da capitania.

É um suporte valioso para corroborar o direito do Piauí sobre a faixa litorânea, mesmo antes da permuta territorial. E, sobretudo, sobre a banda ocidental da Serra de Ibiapaba. Portanto, a lei de 1880, tem suporte histórico, desde a criação da capitania do Piauí.

No entanto, é importante que o Governo se empenhe nessa causa, assim como a imprensa e toda a sociedade piauiense. Ibiapaba também é nossa.

Fonte: JTNEWS

Comentários