Cristiano Torquato

Agente Federal de Execução Penal e Especialista em Direitos Humanos e Segurança Pública.
Agente Federal de Execução Penal e Especialista em Direitos Humanos e Segurança Pública.

Brasil tem déficit de mais de 65 mil servidores penais

É preciso a contratação de mais servidores. Mas, além da contratação, deve ter desenvolvimento de tecnologias de automação, monitoramento e segurança

Segundo o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), divulgado em 2019, com dados atualizados até junho de 2017, o total de servidores penais era de 108.403, sendo que deste total 75.941 estavam voltados a atividade de custódia. O que significa o percentual de 9,30 presos para cada agente no sistema prisional.

Por sua vez, a população prisional era de 726.354 dos quais 706.619 estão no sistema prisional e 19.735 estão nas delegacias e carceragens.

Foto: divulgação/DEPENCurso de Formação Inicial de Agentes Federais de Execução Penal
Curso de Formação Inicial de Agentes Federais de Execução Penal - Amostra da área operacional

A ONU, por meio do Instituto Latino-Americano para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (ILANUD), recomenda que o percentual aceitável de presos por Agente Penitenciário (inspetor, oficial, policial, etc) deve estar abaixo de três internos para cada servidor da área de custódia. O ILANUD ainda recomenda que para ser considerada como ideal ou ótima a proporção, deve haver um agente para cada preso, ou seja, a proporção entre 1:1 (preso x funcionário). Assim, segundo a ONU o percentual de 1:1 é considerado ótimo, e de 3:1 é bom.

Esta razão numérica, pode parecer alta, mas não é. Decorre da necessidade dos serviços prisionais que demandam grande quantidade de servidores penais para o seu perfeito funcionamento. A própria natureza dos serviços penais justifica este quantitativo, pois não é só “abrir e fechar cadeados”. O cumprimento da execução penal vai além disso, existem escoltas, monitoramentos, sindicâncias de faltas disciplinares, treinamento, direitos e assistências básicas de saúde e educação, que devem ser cumpridas conforme previsão legal.

Quase todos os países europeus estão dentro da recomendação da ONU. Países como a Grécia ainda são exceção. Este possui uma taxa de 5,3 presos para cada servidor. Países como Espanha possuem taxas de 3,7. E a maioria possuem taxas notáveis/excelentes, como a Dinamarca que apresenta taxa de 1,4 presos por servidor, a Irlanda, Noruega e Itália possuem 1,5 presos por servidor penitenciário, ou ainda como San Marino que apresenta 0,4 presos por servidor, ou seja, mais servidores do que presos. Concidentemente, estes países possuem índice de Desenvolvimento Humano (IDH) exemplar e baixíssimos índices de desigualdade social que se refletem em baixíssimos índices de criminalidade e, por sua vez, menos encarceramento por 100 mil habitantes.

A Resolução nº 9, de 2009, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) é o documento brasileiro que orienta qual a quantidade de servidores deve ser respeitada. No Brasil vale a recomendação de que se tenha a proporção de 1 agente para cada 5 pessoas presas como padrão mínimo para a garantia da segurança física e patrimonial nas unidades prisionais. Se fossemos considerar a recomendação dos padrões do ILANUD, nenhum estado estaria aprovado.

Evidentemente o percentual de presos por servidor de custódia varia de estado para estado, posto que, embora, todos os órgãos prisionais busquem melhor aparelhar suas estruturas carcerárias de acordo com suas competências legais, as realidades de cada localidade imprimem dinâmicas e resultados bem diferentes nos vários locais do Brasil.

Sejam por limitações orçamentárias das unidades federativas, sejam pela necessidade de contratações emergenciais, incompatíveis com o  longo tempo entre a aprovação da proposta de criação de vagas, e a entrada em serviço dos trabalhadores prisionais, grande parte dos estados contrata servidores temporários emergencialmente para mitigar crises pontuais, que acabam se tornando a regra e não a exceção.

Foto: reprodução/depenTipos de servidores penais por vínculo junho de 2017
Tipos de servidores penais por vínculo junho de 2017

A utilização dos servidores temporários, não esbarra na proibição contida na Lei de Execução Penal, posto que esta veda a delegação de atividades que envolvam o poder de polícia a terceiros. Porém, este grupo [servidores temporários] conhece todas as rotinas internas de estabelecimentos penitenciários, assim como vulnerabilidades e pontos fracos. Demiti-los após o fim de um contrato consiste em colocar no mercado informal um conhecimento que, em mãos erradas, pode facilitar fugas, motins, entrada de celulares, drogas entre outros delitos de impacto negativo no nosso já combalido sistema prisional.

Este risco, quase nunca é levado em consideração na escolha das modalidades de contratação,  é de suma importância e deve ser melhor analisado e estudado, pelas secretarias estaduais ou órgãos competentes, antes de se optar por qual modalidade de trabalhador prisional será investido na função. Por esta razão, entre outras (que não cabe abordarmos neste artigo para não alongá-lo demasiadamente), forçoso convir que os serviços temporários em atividade de custódia penitenciária são menos eficazes para a segurança pública de forma geral.

Agora, a 'figura' dos funcionários terceirizados atuando na custódia dos presos, além de trazer todas as desvantagens do 'servidor temporário', ainda recebem menores salários, são mais vulneráveis às ameaças de presos e facções criminosas [para facilitar a entrada de celulares e drogas, entre outros delitos].

Esbarra ainda na questão da legalidade, pois a Lei de Execução Penal, 7210/84, proíbe que atividades que envolvam poder de polícia sejam delegadas, consigna nos seus art. 83-A e  83-B, quais atividades podem ser terceirizadas e quais são indelegáveis. Vejamos:

Art. 83-A.  Poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares desenvolvidas em estabelecimentos penais, e notadamente:                        

 I - serviços de conservação, limpeza, informática, copeiragem, portaria, recepção, reprografia, telecomunicações, lavanderia e manutenção de prédios, instalações e equipamentos internos e externos;                     

II - serviços relacionados à execução de trabalho pelo preso.

§ 1º A execução indireta será realizada sob supervisão e fiscalização do poder público.                      

§ 2º  Os serviços relacionados neste artigo poderão compreender o fornecimento de materiais, equipamentos, máquinas e profissionais.

Art. 83-B.  São indelegáveis as funções de direção, chefia e coordenação no âmbito do sistema penal, bem como todas as atividades que exijam o exercício do poder de polícia, e notadamente:                       

 I - classificação de condenados;                       

 II - aplicação de sanções disciplinares;                      

III - controle de rebeliões;

IV - transporte de presos para órgãos do Poder Judiciário, hospitais e outros locais externos aos estabelecimentos penais.                          

Os servidores temporários, e mais ainda os terceirizados, carecem do empoderamento necessário aos representantes da lei e da ordem, para reprimir a delinquência interna, posto que a investidura efetiva lhe daria a proteção, a autoridade e a segurança jurídica indispensável para disciplinar e controlar estabelecimentos tão tensos e complexos como são as prisões. 

Neste sentido alguns estados devem ser destacados positivamente na quantidade e na escolha da forma de seus quadros de trabalhadores penitenciários, e outros negativamente tanto pela deficiente quantidade de servidores penitenciários atuando na custódia, quanto pela natureza jurídica da forma de contratar.

Não se pretende aqui avaliar a qualidade dos serviços prisionais dos estados, sendo objeto deste estudo tão somente mapear quais estados estão mais próximos da resolução do CNPCP e quais estão mais distantes.

No lado positivo  temos os estados de Tocantins e Minas Gerais, que são os únicos Estados que se enquadram dentro da recomendação Resolução nº 9, de 2009. O estado do Tocantins apresenta 4,37 presos para cada Agente. O estado de Minas Gerais apresenta melhor posição, 4,20 presos para cada servidor. Contudo o estado de MG utiliza mais servidores temporários do que Tocantins, veja na tabela abaixo.

Positivamente ainda vale consignar alguns outros estados, que, embora não alcançam a meta do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), apresentaram recursos humanos muito próximos da orientação daquele conselho. São eles: Rondônia com 5,48 presos por funcionário de custódia, Mato Grosso com 6,57 presos para cada Agente e Maranhão com 5,71 entretanto neste estado há um grande problema que é a precarização das atividades penitenciárias [já que são muitos agentes temporários, o que, inegavelmente dificulta a valorização da carreira penitenciária], são 334 servidores de carreira e 1.534 servidores temporários.

Cabe um duplo positivo para Rondônia pois não utiliza servidores temporários nem terceirizados. Neste mesmo diapasão, ponto postivo para o Acre, Amapá, Ceará, Distrito Federal, Mato Grasso do Sul, Mato Grosso, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo, onde todos os agentes penitenciários são estatutários, embora haja um déficit considerável.

Na outra ponta, aparecem com as piores médias percentuais de responsáveis pela custódia os estados do Rio e Janeiro, com 35, Pernambuco com 30,3 presos para cada Agente e Amapá com 25,51.

Os estados do Amazonas e Pará chamam negativamente atenção, não pela quantidade ruim, posto que estão próximos à media nacional, mas por terem seus quadros de servidores prisionais quase todos baseados em temporários ou terceirizados.

No AM dos seus 939 agentes de custódia apenas 35 são estatutários, e o restante é de terceirizados, contratados por empresa que gere os presídios no estado, ou seja, 96,27% do efetivo de trabalhadores prisionais do Estado do AM são terceirizados. Respeitadas as diferenças, isto é semelhante a um estado imaginário onde sua polícia nas ruas fosse de uma empresa de vigilância.

No PA a situação é melhor por serem servidores temporários e não terceirizados como no AM. Contudo, apenas 12 são estatutários contra impressionantes 1859 servidores temporários.

Observe na tabela abaixo [fonte: Infopen] que em junho de 2017 a defasagem de servidores responsáveis pela custódia no país todo estava em 65.371. Feita uma projeção para junho de 2022 este déficit poderá chegar a 107.852 se não houver contratação de pessoal.

Tabela
Pode haver alguma incompatibilidade com a realidade devido a possível erro de informações

Nesta tabela demonstra-se de forma visual o número de servidores penitenciários que faltam no Brasil. Se fossemos considerar a razão de servidores mínimos recomendada pelo ILANUD/ONU o déficit seria muito maior.

A falta de informação sobre o percentual adequado de trabalhadores prisionais, passa desapercebida, até mesmo pelo judiciário, e é só mais uma faceta da falta de conhecimento e de planejamento dos reais problemas nacionais que assolam a administração pública no Brasil em todas as instâncias, e que dificultam a diminuição do abismo entre o Brasil e os países desenvolvidos.

As mazelas prisionais, e de segurança pública, vêm de décadas e não deixam muitas razões para espíritos eufóricos. Porém, construir soluções requer mais do que esperança. Requer ousadia, conhecimento, estudo de soluções, pesquisa, planejamento, decisão, investimento, comprometimento, envolvimento da sociedade e dos governos. Esta é uma tarefa difícil e não será vencida enquanto o Brasil continuar agindo como se o problema fosse de outra sociedade, como se fosse um problema da África do Sul, ou do México. Se nada for feito logo, o quadro continuará piorando até chegar ao caos.

É preciso a contratação de mais servidores. Mas é preciso para além da contratação de servidores desenvolver tecnologias de automação, monitoramento remoto e mecanização de portas em penitenciárias e centros de detenção de forma a se manter a ordem e a segurança interna nas prisões, enquanto não chegam os servidores em número necessário, ainda que jamais sejam capazes de substituir a mão de obra humana.

Do Estado de São Paulo tem saído bons exemplos de automação desenvolvidos por servidores e que funcionam adequadamente com baixo custo.

O ideal a ser buscado no Brasil de hoje, consiste em estabelecimentos seguros para os trabalhadores, visitantes, presos e a sociedade em geral. Em prisões operadas por servidores penitenciários profissionalizados, que compreendam a importância do seu papel na sociedade, bem remunerados, que saibam a finalidade da execução penal e executem este trabalho com conhecimento e orgulho dele.

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